Depois de meses a espalhar a moda do monodente, eis que o incisivo solitário de S. finalmente cedeu.
Agora, o broto tem um janelão aberto na frontaria da sua boca amorangada.
Um dia destes, vindo do nada, precipitou-se para os meus braços, depois de apressada correria pela casa fora, dois lagrimões escorrendo, pesados, pelas bochechinhas. A boca escancarada sangrava, e mais escorria, acompanhando os gritos. Coisa pouca, afinal, amplificada apenas pelo afago maternal. Na cabeça, S. levava uma bandelette encarnada – sobrevivente do Halloween – vestígio do diabrete que há em nós (e nele também).
Claro que os chifres fofinhos que lhe coroavam a tola, a gengiva avermelhada e a nova evidência dos caninos, subitamente protuberantes, criaram na assistência uma irreprimível vontade de rir. Os irmãos rodearam-no solidariamente, fraternalmente, enquanto todos lhe refrescávamos a boca no lavatório imaculado.
“Não há crise, não há crise. Agora passa e num instante volta a crescer”, sossegou, sábio, o do meio.
S. secou as lágrimas, conteve o soluço, ajeitou a bandelette e reservou o incisivo solitário, que mais tarde colocaria debaixo da almofada, à espera que uma fada (ou um ratinho qualquer, já nos perdemos) o trocasse por uma moeda luzidia.
À noite, quase a adormecer, a fada levantou-se em sobressalto, procurou uma moeda e foi fazer magia. Só para acordar na manhã seguinte no meio da algazarra pueril: “Mãe, foste tu que puseste uma moeda na cama do S?”
(a ilustração, um pedido à medida, é do G. que a mãezinha não sabe desenhar um ovo estrelado)
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