(O Coiso)
Quando eu era pequenina, havia coisas muito erradas que eu dizia com toda a propriedade.
– Pai, a gente vamos à praia?
E ele, para quem devia ser obrigatório que nada fosse obrigatório, via-se obrigado a introduzir alguma rectitude na minha linguagem, como um ortopedista das palavras.
– O quê?
A cabeça lá no alto, a mão incrédula, atrás da orelha, os olhos fechados, noutra direcção, como se eu já não estivesse bem ali, ou tivesse desaparecido, engolida pelos tacos de madeira acabados de encerar.
– Pai, depois do almoço a gente vamos…
– Quê?
Aí eu ficava tão triste, mas tão triste, e emendava na hora, pai nós vamos à praia, nós vamos ao cinema, nós vamos jantar fora com os tios e os primos? Ao que ele respondia, com toda a serenidade do mundo, que eu podia dizer “a gente” à vontade, desde que o sujeito concordasse com o verbo. Tanta ortodoxia era complicada para mim. Mas para ele estava fora de questão usar aquela explicação clássica: agente é da polícia. Isso é que não. Isso é que nunca. Teria sido pior a emenda que o soneto. Os polícias nunca se chamam. Não se mencionam. Não se lhes dirige a palavra. Não se põem palavrões na boca de uma criança.
De maneira que a gente vai. A gente gosta. A gente aprende.
Até que um dia a gente diz, quando não sabe o que há de dizer:
– O coiso.
– O coiso?
Aí o meu pai nem se pergunta se terá ouvido mal. Nem se dá ao trabalho de fazer aquele número da orelha. Declara o estado de emergência, suspende o proibido proibir e só não me lava a boca com sabão azul porque há ocasiões em que um olhar basta.
Deve ter sido aí que percebi que o coiso era um insulto à inteligência, uma falha perdida. Uma aberração.
(Tentei, mas não chegou a tempo a ilustração para o inominável. Então fica este belo e bem vermelho C, de coiso, cozinho, e muitas mais coisas mais começadas por C que agora não vou para aqui chamar, que é preciso manter a cabeça fria, e o decoro também).
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